Na semana passada o Luciano Huck, publicou no Facebook, o texto da jornalista Eliane Brum.
Ao conviver com os bem mais
jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que
estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante
da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, mais despreparada.
Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não
sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de
usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o
esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas,
despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida.
E por
tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que
nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a
partir da dor.
Há uma geração de classe média que estudou em bons
colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve
acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que
seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil.
Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a
sua genialidade.
Tenho me deparado com jovens que esperam ter no
mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria
um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede.
Foram ensinados a
pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não
acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos,
revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.
Como
esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que
ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem
que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é
preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou
aos gritos.
Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia
a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.
Por que boa parte dessa nova geração é assim?
Penso que este é um
questionamento importante para quem está educando uma criança ou um
adolescente hoje.
Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a
felicidade é uma espécie de direito.
E tenho testemunhado a angústia
de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”.
Pais que
fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os
perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.
É
como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem
devedores! Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso
pessoal...
Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que
os filhos compreendam, como parte do processo educativo, duas premissas
básicas do viver: a frustração e o esforço? Existe alguém que viva sem se confrontar
dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas
capacidades individuais?
Nossa classe média parece desprezar o esforço.
Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto.
Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para
conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor.
Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado
no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus
pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que
ainda precisam assegurar seu lugar no país.
Da mesma forma que
supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a
crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que
as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em
muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar
garantido.
Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade
é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista
para compreender a geração do “eu mereço”.Basta andar por esse mundo
para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir
que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo
muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque
possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo
para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter
de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja,
consegue tudo o que quer.
A questão, como poderia formular o filósofo
Garrincha, é:
“Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria
fácil?"
É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto
construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão.
Ninguém
descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este
momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se
explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre
sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar
da tristeza e da confusão.
Me parece que é isso que tem acontecido em
muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item
principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir
aos filhos, para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de
medo e da sensação de se sentir desencaixado?
Não há espaço para nada
que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu
lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do
projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da
completude.
Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém
está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e
reconhecer equívocos – o mais fácil é calar... E não por acaso se cala com
medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se
comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem
que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.
Se os
filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos
pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos
podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o
sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a
relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.
Aos
filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir
cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são
as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade
de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira
porque a sentem na própria pele dia após dia.
É pelos objetos de consumo
que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta
que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só
eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para
manter o jogo funcionando.
O resultado disso é pais e filhos
angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E,
portanto, estão perdendo uma grande chance.
Todos sofrem muito nesse
teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir
que existe uma vida em que se pode tudo.
E acreditar que se pode tudo é o
atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela
que paralisa.
Quando converso com esses jovens no parapeito da vida
adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto,
percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é.
Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é
complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou
superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria
voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza
de chegada.
É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias
escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.
Seria
muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto
uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em
quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa
briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é:
“Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou
confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”.
Porque
fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho
que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil,
incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar
a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil
equilíbrio doméstico possa ser dito.
Agora, se os pais mentiram que a
felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por
existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao
descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma
garantia.
O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha
de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão
dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque
com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a
responsabilidade pela sua desistência.
Crescer é compreender que o fato
de a vida ser falta não a torna menor.
Sim, a vida é insuficiente. Mas é
o que temos.